Nem todo mundo pode ter um helicóptero. Engraçado, uma afirmação deste tipo raramente gera algum tipo de discussão – particularmente, nunca vi alguém discordar. O raciocínio por trás da verdade parece óbvio: um bicho desses custa uma fortuna, logo, só os muito ricos podem comprá-lo. Pois é, mas “antes fosse só isso”, como já vi alguns deles dizerem. A questão está no custo de manutenção e nas agendas de reparo, afirmam também revistas especializadas.
Mas por que falar de helicópteros por aqui? Claro que estou longe de tal sonho, portanto o tema não tem relação nenhuma com a minha realidade. A verdade é que eu resolvi trazer tal afirmação para nosso dia a dia, tentando adaptá-la: tenho dito com frequência que nem todo mundo pode ter um carro. Encare o desafio de relacionar carro, helicóptero e finanças pessoais como algo motivador, senão tudo terá sido em vão.
O fato é que com a abundância do crédito para compra do carro zero ou usado, inteligência financeira deixa de ser um diferencial. Não compra carro quem pode ou tem condições, mas quem quer. Veja só, basta querer. Depois de muito estudar as estatísticas deste mercado, conversar com profissionais que atuam neste ramo de negócios e pessoas que decidiram comprar ou trocar de carro nos últimos anos, cheguei a uma conclusão óbvia, banal, mas assustadora do ponto de vista financeiro: desejo, coragem e uma conta matemática simples que valida se a parcela cabe no orçamento são as únicas variáveis que preocupam o aspirante a motorista na hora de comprar seu veículo.
Carro virou helicóptero
Tão logo o carro sai da concessionária ou loja e vai parar na garagem, algo mágico acontece em torno das finanças de muitas famílias: o automóvel se transforma em helicóptero. Quem paga o combustível do dia a dia? E o seguro, o IPVA, a troca de óleo, o pedágio, a manutenção preventiva (revisão), a troca de pneus, os pequenos reparos, o estacionamento, a lavagem? Advinhe o desfecho: a família deixa de priorizar momentos de alegria, qualidade de vida e bem-estar porque as despesas e o pesado carnê estrangulam suas finanças. Por 36, 48, 60, 72 meses.
Soa muito exagerado? Feliz do leitor que ler este texto com esta perspectiva – este provavelmente tem um carro, e não um helicóptero, na garagem. Ótimo. Os demais sabem bem do que estou falando. Separei alguns números organizados pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e publicados na Folha de S. Paulo, edição de 26 de novembro, que mostram como a despesa com carro subiu o dobro da inflação nos últimos 12 meses:
- O custo com o seguro teve a maior alta no período, 14,63%;
- Lavagem e lubrificação tiveram alta de 10%;
- Serviço de reparo para automóvel, estacionamento e garagem subiram 9,42%;
- Óleo lubrificante está 7,41% mais caro;
- Acessórios e peças para automóveis apresentaram alta de 6,49%;
- O pedágio subiu 5%.
Mas não vivemos um período de crise, desemprego e susto na economia? A explicação dada por André Braz, um dos economistas responsáveis pelo estudo, é suficiente para compreender o que houve:
“A alta nos custos de manutenção do carro se explica pelo crescimento da massa de salários. Mesmo durante o período de crise, quem conseguiu se manter empregado obteve aumentos reais. Então, houve espaço para aumento de preços por conta da demanda”
Demanda, a palavra-chave! Depois de um período de queda nas vendas, a indústria aproveitou os incentivos do governo para tirar o atraso e o mercado se reaqueceu com incrível velocidade e vigor. Basta perguntar ao vizinho ou ao dono de uma loja de carros usados. Portanto, vê-se claramente que manter um carro custa mais caro porque todos querem andar por ai motorizados. Simples.
Se não for assim, o brasileiro não consegue comprar! Adoro ouvir frases como essa. O som das palavras é entusiasmado, repleto de sentimento e emoção. São justificativas vazias. E só. Na prática, o que acontece é muito diferente: o valor do carro, inflado pelos juros do financiamento a perder de vista, soma-se ao mundo de contas e despesas e, muitas vezes, o caos se instaura. A razão de alegria vai ficando encostada, mal tratada, perdendo muito de seu valor.
O conforto antes proporcionado se converte em carnês atrasados, impostos devidos e falta de manutenção. Com peças do mercado paralelo, a segurança começa a ficar comprometida e os passeios já não são tão divertidos. O carro enguiça, para no meio da serra e exige destreza quando seus pneus, completamente carecas, insistem em complicar a direção na chuva. Mas, é claro, o que importa é que a família tem um carro, ou melhor, um helicóptero. Imagine a cara dos vizinhos olhando para aquele bicho estacionado logo ali…
A esta altura, se você não julgava o texto exagerado, já o faz – ou no mínimo considera tudo dramático demais. Engraçado? Talvez. Não importa se a graça das palavras têm interpretações diferentes, desde que o recado dado permaneça cristalino: carro não é para qualquer um! Educação financeira, um pouco de matemática, algum bom senso e planejamento podem fazer todo o artigo parecer tolo. E estes não se preocupam com a riqueza, mas com a liberdade e independência financeira. Para estes poucos – e realmente livres -, carro não é helicóptero.
PS1: você já deve ter se dado conta de que sou daqueles que compra à vista, com desconto. Compartilho a breve narrativa da compra de meu automóvel atual, nos idos de 2007. Eu tinha cerca de R$ 45 mil para comprar o carro, guardados e poupados com muito trabalho. Ao analisar as opções, tarefa que levou 6 meses, optei por um carro de pouco mais de R$ 40 mil (completinho). Com a grana que tinha pude pagar o licenciamento, seguro, imposto etc. Ao contar feliz a novidade para os amigos, ouvi: “Burro, devia ter usado a boa grana como entrada e sair com um carrão bem melhor. Ou podia ter pego um usado importado ou de uma categoria acima, muito melhor também”. Brindei ao burro e todos rimos bastante. O resto é história.
PS2: recomendo aos que ainda não conhecem a acidez de minha opinião sobre as compras de bens caros – e que colocam famílias inteiras em modo de autodestruição financeira sem necessidade – que leiam os seguintes artigos de minha autoria:
- Financiar o carro é fácil! Pagar, nem tanto!
- Crédito fácil + financiamento = carro caro
- Seu carro, seus gastos. O que fazer?
- O que você não sabe sobre carro financiado
- A compra do carro e as desculpas esfarrapadas
- A Psicologia Econômica e a compra de seu carro novo
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